segunda-feira, 16 de junho de 2008

A DEVIDA COMÉDIA

A DEVIDA COMÉDIA
Miguel Carvalho

Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo


Criancinhas
A criancinha quer Playstation. A gente dá.
A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.
A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.
A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.
A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.
A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.
A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.
Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher.
Desperta.
É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.
A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.
A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal.
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».
A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».
Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha?
Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos
congressos e debates para nos entretermos.
Artigo publicado na revista VISÂO online

1 comentário:

Tudo de mim. Ou quase. disse...

Uma "visão" tão absolutamente real...
Este tipo de comportamentos ( e sim, acredito que a culpa acaba por ser quase em exclusivo dos paizinhos), dá-me arrepios. Uma boa palmada na altura certa, um castigo, um NÃO, nunca traumatizaram ninguém. Nas escolas é a mesma coisa. E, aqui, a culpa acaba por ser do sistema e dos papás que ao mínimo guinchinho da querida cria querem estrangular aqueles que, supostamente, têm um papel importante na educação dos seres que fizeram nascer. Um professor já nem pode ter autoridade para fazer com que um aluno não esteja agarrado ao teclado de um telemóvel. Porque os meninos não podem passar uma hora sem trocar sms's, ou ficariam traumatizadinhos para o resto da vida. Depois admiram-se quando as pestinhas adoráveis de meio palmo se transformam em monstrinhos de palmo e meio.